quarta-feira, janeiro 08, 2025

496. Regresso à anormalidade

 Logo a seguir ao final do ano, ia eu sozinho no carro no regresso a casa quando tenho este pensamento: "O trânsito já voltou ao normal". Depois de quinze dias em que conseguia fazer o percurso trabalho-casa em vinte minutos, no que parecia ser uma viagem ao início do século, as coisas voltavam ao "normal" do pára-arranca, da irritação automobilística, dos papás que quase levam os seus veículos às salas de aulas porque os meninos e meninas não se podem cansar nem molhar as roupinhas e penteados. Neste capítulo, sempre fiquei com uma dúvida, que não vem muito ao caso: o trânsito aumenta exponencialmente quando chove, em parte porque os pais vão levar os filhos à escola. Pergunto: como raio chegam os petizes ao estabelecimento de ensino quando está sol? 

Mas voltemos ao que interessa: a normalidade é o trânsito complicado, o pára-arranca, os acidentes constantes. Estranhamos quando conseguimos meter uma terceira velocidade, isto no anacronismo dos carros com transmissão manual. Creio até que em determinadas estradas o termo "trânsito" está mal aplicado e deveria ser substituído por estacionamento temporário, porque, afinal, passamos mais tempo parados do que a andar. 

No final de um ano a aturar o trânsito, não admira que algumas pessoas comecem a bater mal. E para este problema, nem o melhor dos chapeiros tem solução.  

segunda-feira, janeiro 06, 2025

495. Inteligências raras

Nada como um hiato de cinco anos para voltar a escrever neste blogue. Se sair alguma coisa de jeito, para a próxima tento o hiato de seis anos. 

Agora a sério. Há pequenas coisas que me aguçam a necessidade de escrever. Pequenos cliques que passam despercebidos às restantes pessoas, talvez porque são temas irrelevantes como o da inteligência artificial, o clichê tecnológico dos últimos tempos. De um momento para o outro, parece que deixámos de ter a capacidade de pensar pelas nossas cabeças. Acabei de ver um anúncio de um operador de comunicações português que, numa frase, sintetiza a importância que esta revolução tem nas nossas vidas. Nele, um homem que atende no telemóvel uma chamada de telemarketing faz a pergunta mais pertinente: "A senhora é uma pessoa, certo?". Achei brilhante. Da maneira como as coisas estão, vai haver uma altura em que vamos ser enganados, onde a humanidade vai ser sintetizada de forma perfeita, imitando talvez as nossas imperfeições. 

Li, sobre este assunto, uma notícia sobre uma empresa de software cujo CEO se gabou de despedir toda a equipa de programadores para usar apenas a dita cuja Inteligência Artificial. Parece que a coisa não funcionou como ele estava a pensar, porque logo de seguida já estava a colocar anúncios a contratar programadores. 

Outra notícia, que creio ser anedota mas que serve para ilustrar o ponto a que chegámos, fala sobre um teste que foi feito a uma plataforma de Inteligência Artificial. Nele, era pedido que passasse uma janela de um site com um teste para avaliar se era um robot. A plataforma contornou a questão contratando uma empresa para resolver o problema. 

Não quero dizer com isto que sou contra a tecnologia, mas estamos a embarcar numa revolução que, como todas as revoluções, são imprevisíveis e podem não levar aos fins pretendidos. Como ferramenta de trabalho, é útil, mas nada substitui o génio humano. 

Da minha parte, continuo a preferir a minha estupidez natural a confiar cegamente na inteligência artificial. 

quarta-feira, setembro 09, 2020

493. O amor não é para aqui COVIDado

 A cena passou-se hoje na sala de espera do hospital. Os bancos de quatro lugares foram alterados de forma a só permitir a utilização dos dois lugares de topo, tendo sido colocados autocolantes a indicar que os dois lugares do meio tinham sido proibidos. As regras de distanciamento assim exigem e as pessoas de forma geral obedecem. Como havia poucos lugares, especialmente depois da aplicação desta regra, levantei-me de um banco de quatro onde só estava sentado eu. Passado algum tempo, um senhor de idade sentou-se no lugar que eu tinha ocupado. A esposa sentou-se ao lado, no lugar proibido. A funcionária que estava na recepção veio logo chamar a atenção. Resposta da senhora: "Mas eu sou casada com ele!", ao que a funcionária responde, com a calma de quem está calejado de tanto lidar com situações destas: "Pois, mas não é casada com o senhor que se vai sentar na outra cadeira." 

492. Sorte ou azar, eis a questão

Li esta semana a estória de Tsutomu Yamaguchi, que é o exemplo perfeito de que a sorte e o azar são muito relativos. Este senhor estava em Hiroshima a fazer um serviço para a empresa para a qual trabalhava quando rebentou a bomba atómica. Ficou surdo de um ouvido, teve cegueira temporária e ficou com queimaduras no corpo. Mesmo assim, três dias depois apresentou-se na empresa, em Nagasaki, e estava a explicar ao patrão o que tinha acontecido - este último não percebia como uma bomba tinha conseguido destruir uma cidade, - quando caiu a segunda bomba atómica. Das setenta pessoas que se pensa terem estado nas duas cidades no momento da explosão das bombas, é o único caso oficial. Morreu em 2010, aos 93 anos. A sorte e o azar são duas faces da mesma moeda. O que interessa é seguirmos em frente. 

quinta-feira, maio 09, 2019

491. Oh my GoT, Marketing Viral!

Quebro o silêncio para constatar um facto banal: o mundo é conduzido implacavelmente pelo marketing e pela publicidade em geral. Basta olharmos para as ruas de qualquer cidade, qualquer canal de televisão, revista ou página de Internet (que não seja a Wikipedia, que ostentam orgulhosamente a bandeira se só fazerem publicidade a eles próprios). Tudo isto tem custos e sustenta uma das indústrias mais rentáveis que existe no mundo. 

Basta vermos os filmes de Hollywood: não há um único filme urbano que não tenha uma personagem que trabalhe na área. Mesmo assim, neste sistema onde tudo é pago, há fenómenos quase inexplicáveis que de um momento para o outro se tornam extremamente populares. Chamam a estes fenómenos de "marketing viral" e grassam nas redes sociais como verdadeiras ervas daninhas que furam o sistema e provam a fragilidade de toda a indústria. 

Um exemplo típico aconteceu no 4º episódio da Série Game of Thrones. Alguém reparou que havia um copo que aparentava ser da Starbucks em cima de uma mesa de um banquete que era suposto passar-se na época medieval (e sim, ainda não existia Starbucks, muito menos café). Este facto foi imediatamente notado e foi propagado pelas redes sociais mesmo depois de ter sido apagado da versão oficial pelos produtores da série. Geraram-se múltiplas versões e tornou-se mundialmente conhecido - afinal, tinha sido a coisa mais interessante do episódio antes da Missandei ter perdido a cabeça. 

Hoje veio a público o ganho astronómico que a cadeia de cafés americana arrecadou em publicidade gratuita, mesmo que tenha ficado provado que, afinal, não era um copo da Starbucks e nem tinha café mas um chá de ervas que a Emilia Clarke tinha pedido.

sexta-feira, novembro 30, 2018

490. Caminhos de Braga

    Saí da sala onde decorrera o evento com a firme convicção de que o trabalho proposto seria simples. Afinal, o que seria mais simples do que falar daquilo que se faz todos os dias? A constatação do meu erro foi quase imediata: como se encontra a relevância no que para nós é banal? Foi com esta dúvida na cabeça que atravessei o Largo de São João do Souto debaixo de uma chuva incessante. Puxei o capucho para cobrir a cabeça, ignorando o impulso de tirar o pequeno guarda-chuva de senhora que, num acto de desespero, tinha guardado na mochila. Queria sentir a chuva a cair e esta fez-se sentir. Dizem que Braga é o penico dos céus. Tive a prova disso no pequeno percurso que fiz até ao carro, como se São Pedro me quisesse pôr à prova para aumentar a autenticidade do relato.

    Segui pela rua do Anjo, passando pela famosa igreja de Santa Cruz, construída no Séc. XVII num estilo barroco maneirista. Reza a lenda que na sua fachada existem três galos em alto relevo e que a moça casadoura que os descubra tem casamento marcado para breve. Ignorei a fachada - já tinha descoberto os galos antes e, feliz ou infelizmente, nada acontecera e o meu estado civil manteve-se intacto. Dois turistas estavam na esquina da rua do Anjo, junto à famigerada fachada, mas estavam entretidos a tirar selfies à chuva. Fazem milhares de quilómetros para tirarem fotografias que podiam ter feito em casa, apontando a máquina para o espelho. Escapa-me o interesse destas novas tecnologias, penso, enquanto sigo pelo estreito passeio de granito irregular da Rua do Anjo. Os turistas seguem pelo mesmo trajecto, tentando ver algum motivo de interesse naquilo que eu já sabia não ter. Passo pelo largo de Santiago, depois sigo pela Rua do Alcaide, onde duas obras me obrigam a ziguezaguear entre os dois passeios, prova de que a cidade se está a renovar. Mais à frente chego ao largo de Paulo Orósio (e não Osório como alguns insistem em chamar). No meio do largo, uma estátua recente de Júlio César, que é o equivalente a colocarem uma estátua de Hitler no centro de Varsóvia. Para além da estupidez do acto, a mesma estátua é de uma estética duvidosa que em nada prestigia a cidade, no meu entender e do de outras pessoas cuja opinião me lembro de ter lido nas redes sociais e, sendo feita de plástico, sujeita a acidentes como o que aconteceu recentemente, para gáudio de muito boa gente.

    Passo em seguida pelo parque radical, complexo situado em Maximinos e que, além de diversas estruturas para práticas desportivas, ostenta um conjunto de grafittis de gosto duvidoso e uma escultura que tem uma ligação à cidade que me escapa: a de uma garrafa de coca-cola do tamanho de um homem.

    Cheguei ao carro completamente encharcado e com fortes dúvidas sobre o trabalho que me tinha sido pedido. O resto do caminho foi feito por uma via rápida que atravessava todo o vale de palmeira, único reduto dos arredores de Braga que ainda não foi tomado pela urbanização agressiva. A conquista, no entanto, já foi iniciada, primeiro com a construção do estádio numa pedreira (e que resultou, na minha opinião) no desperdício de uma boa pedreira. Depois do estádio começaram a aparecer grandes superfícies como se de uma metástase se tratassem, culminando no Nova Arcada, um centro comercial que veio desviar o pouco comércio que havia no centro da cidade.

    Depois do Nova Arcada, a paisagem muda. A alteração é visível, mesmo debaixo da chuva que teima em não querer parar. De repente a rusticidade dos campos de cultivo torna-se predominante, especialmente depois de atravessar o rio Cávado. Ao entrar em Vila Verde dou-me conta do aumento do trânsito, próximo da zona do Alívio, estranho nome para quem está parado à espera que o sinal vermelho das obras mude. Opto por um atalho que é substancialmente mais longo, mas com a vantagem principal de não ficar parado e a vantagem adicional de me lavar a alma com algumas das paisagens mais rústicas das redondezas - sinal irrefutável de que estava em casa.

quarta-feira, dezembro 24, 2014

488. Fólicos Capilares

Assisti hoje a uma conversa do mais alto nível sobre cuidados a ter com fólicos capilares. Parecia que estava numa consulta de dermatologia, mas não. Estava na fila do supermercado e o caixa dava conselhos com evidente conhecimento de causa ao cliente que estava à minha frente.

Longe vão os tempos em que o caixa tinha o nono ano. Hoje temos doutores a passar o arroz e o feijão nas máquinas registadoras, um pouco por esse país fora. 

terça-feira, novembro 11, 2014

487. Surrealismo badalhoco

Devo ter princípios à antiga. Só pode. Hoje de manhã estaciono o carro no sítio de costume, nas traseiras de um café da moda de Braga. No passeio já tinha visto garrafas que os clientes espalhavam durante a noite, numa cópia de um costume espanhol. Mas de ver as garrafas a senti-las a partir por baixo dos pneus do carro vai uma distância que não me interessava percorrer. Paro o carro e olho para trás. Havia um monte de garrafas partidas no sítio onde tinha passado com o pneu. Como não as tinha visto, presumo que já outro carro tinha passado por cima delas.

Olho para o lado, e vejo outro monte de garrafas, atrás de um outro carro. Como tinha visto uma senhora da limpeza das ruas na rua imediatamente anterior, fui falar com ela. O diálogo, absolutamente surrealista foi algo como:
Eu: "Bom dia, estão ali vidros de garrafas, depois da curva."
Ela, enquanto limpava pacatamente folhas do passeio: "Eu sei, juntei-as em montes. Quando passar por lá, apanho-os."

Fui aos arames. Para facilitar o seu serviço, esta criatura tinha feito montes de garrafas por trás de carros, sem nunca lhe passar pela cabeça que os condutores podem não ver os montes. E mesmo se os vissem: iam andar a colocá-las novamente nos passeios?

Conclusão: devo ter mesmo princípios à antiga, e um mau feitio do pior. Só pode. (E, quem sabe, dois pneus furados.)